Bolsas de (des)incentivo à criação artística
O contexto periférico das Ilhas, a par de outras circunstâncias altamente limitantes como o escasso universo de infra-estruturas e recursos (sobretudo na área académica) ou o centenário défice cultural nacional – agudizado nos Açores -, tornam a carreira artística profissional praticamente impossível. Desta forma, quase sem excepção, todos os cidadãos açorianos que a tal ambicionam se vêem forçados a abandonar as Ilhas. A que criadores, portanto, se destinam estas bolsas e qual a sua efectiva contribuição para os objectivos a que se propõem? A meu ver, nenhuma, porque profundamente erradas em designação, essência e aplicação. Passo a explicar, centrando-me quando necessário, na minha área de trabalho – a música.
Uma bolsa é uma mais-valia que contribui (no todo ou em parte) para a formação curricular do bolseiro. Qualquer instituição que a atribua terá, portanto, de assegurar e controlar a directa aplicação da bolsa no âmbito a que se destina. Assim, o bolseiro tem de comprovar que de facto utilizou as mais-valias para o seu enriquecimento na área em questão. Ora, nestas bolsas, isso não acontece – o destino dado às verbas é da exclusiva responsabilidade dos galardoados, que podem até submeter a apreciação trabalhos realizados em qualquer outra altura – desde que inéditos. A iniciativa adquire assim contornos de concurso, e a mais-valia deveria designar-se Prémio – e não Bolsa.
Este tipo de concursos é um dos meios frequentemente utilizados para promover a criação artística nas Ilhas: eventos de carácter competitivo, organizados por entidades públicas, privadas ou em cooperação, em que os participantes são estimulados a apresentar-se e aos seus trabalhos, com o intuito de se apurarem os que qualitativamente se destaquem. Neles, instituições de carácter diverso investem-se frequentemente de poderes de julgamento artístico – mesmo sem qualquer tipo de creditação técnica ou científica, escolhem júris, atribuem galardões, etc. Processo idêntico ocorre na subsidiação pública, nomeadamente ao nível da DRaC. Os júris tomam as suas decisões à porta fechada, tornando inacessíveis os contornos e motivações das decisões.
No caso das “Bolsas” em questão, o Júri avalia projectos e não obras definitivas – como se pode avaliar a relevância artística de algo com base num projecto de intenções? No caso da música, por exemplo, com que palavras se dá uma ideia, ainda que vaga, do resultado final?
Outros critérios de atribuição previstos, como o currículo, apenas dificultam a aplicação de critérios objectivos de avaliação, pois apenas permitem ter uma ideia do perfil do candidato, deixando os mais jovens numa situação clara de injustiça perante colegas mais experientes, independentemente do valor do trabalho proposto.
Sob o ponto de vista de investimento público, creio que há a ponderar ainda outros aspectos: qual o retorno, para a Região, desta iniciativa? Lembremos que €10000 correspondem a mais de um ano de trabalho de muitos cidadãos.
Centrando-me na música, à qual são dedicadas quatro bolsas, duas no âmbito da música escrita da tradição europeia (generalizadamente chamada de música clássica) e outra de composição para filarmónicas, creio que merecem reflexão alguns pontos. Por exemplo: de todos os residentes nos Açores, quantos estarão habilitados a escrever, digamos, para orquestra sinfónica? Destes, quantos são compositores profissionais, fazendo da escrita de música a sua actividade principal? E destes, quantos suspenderão ou alargarão essa actividade para se dedicarem em regime mais ou menos exclusivo ao projecto em causa? Numa Região onde não existe qualquer orquestra sinfónica residente, onde escasseiam grupos de câmara ou coros de nível sequer médio (que dizer profissional!) e onde as Filarmónicas, apesar da sua importância histórica, são grupos amadores, ficando necessariamente muito aquém de um nível profissional (necessário à digna realização da maior parte da arte dita de vanguarda), temos de admitir que o impacto e retorno deste investimento serão, para a Região, residual – e, relembremos, sem assegurar sequer uma efectiva valorização artística dos autores.
Creio relevantes ainda considerações como a instauração de um clima nefasto entre o escasso grupo de criadores, instigados a competir entre si, bem como um afastamento ainda maior entre estes e o público em geral, resultante da atribuição de verbas elevadas a concidadãos sem clareza de meios e retorno evidente.
A meu ver, havendo vontade institucional de fazer investimentos que promovam a actividade e o reconhecimento dos intervenientes na produção artística dos Açores, a estratégia deveria ser completamente diferente: através da solicitação de projectos / obras, requerendo um alto grau de especificidade de critérios meramente técnicos, suficiente para reservar aos especialistas na área a possibilidade de participação, sem necessidade de recorrer a um júri. De acordo com o número de obras entregues e sua natureza, preparar, em conjunto com os autores, a sua edição e realização pública, desenvolvendo, sempre que possível, diligências com outros artistas e entidades, nacionais ou internacionais, que colaborariam de perto com os criadores açorianos para um digno e adequado tratamento das suas obra – no caso da música, por exemplo, aproveitar a passagem da Orquestra Metropolitana de Lisboa, no âmbito do Festival Musica Atlântico, para levar a palco obras de autores açorianos. Seria tão fácil coordenar investimentos, mas há um senão: dá trabalho.
Poderia também editar-se um livro com pequenas biografias dos artistas de todas as áreas, acompanhadas de um pequeno texto pessoal destes sobre a obra em questão e o seu actual momento artístico. De um conjunto de iniciativas deste género, não tenho dúvidas de que haveria uma valorização pessoal e histórica de todos os intervenientes, um digno tratamento da cultura e das artes, e uma aproximação geral entre público e criadores.
Tenho grandes reservas em relação à realização de concursos de natureza artística, sobretudo a sua utilização generalizada como veículo promotor de criação, num contexto claramente em défice nesta área. A maioria dos artistas residentes nos Açores não é profissional; não está por isso à espera de remuneração institucional para criar. Espera, isso sim, a existência de recursos que permitam dignos tratamento e exposição pública do seu trabalho, ganhando por meio dele o carinho, respeito e reconhecimento dos seus pares e a possibilidade de participar construtivamente na sua vivência. Espera escolas de arte oficiais e outras possibilidades de formação adequada, flexibilidade e engenho na aplicação de recursos, e uma manifesta e evidente vontade de trabalho de quem por direito.
Espera, sobretudo, que se minimizem distâncias e se faça um digno aproveitamento do património humano das ilhas. Esse, ao menos, tem a sua excelência comprovada pela História.
(Artigo publicado no Expresso das Nove de 22/01/10)
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2 coments:
é muito engraçado o meu filho tem o teu nome chama-se rafael fraga
muito engraçado.
Hoje, dia 3 de Agosto de 2010, o dr. Jorge Paulus Bruno, não se digna a anunciar os resultados das decisões dos Júris: porque será? Recorde-se que deveriam ter sido anunciados em Fevereiro.
Antunes
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